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Publicado: 20 de novembro de 2024 às 11:35

Desafios enfrentados pelos empreendedores negros na América Latina

Sheila começou a desenvolver há mais de 12 anos, a criação de uma linha de produtos voltados ao cuidado dos cabelos afro.

Vários desafios foram enfrentados por Sheila Makeda ao tentar abrir sua primeira conta jurídica em um banco tradicional e, infelizmente, ela falhou. Além do mais, foram muitas as fábricas de cosméticos que ela percorreu até que encontrou a gerente comercial negra que iria acreditar em seu projeto. Essa parceria foi fundamental para concretizar a ideia que Sheila começou a desenvolver há mais de 12 anos, a criação de uma linha de produtos voltados ao cuidado dos cabelos afro.
Ela não consegue mais contar quantas vezes recebeu olhares de descrédito e escárnio quando dizia ser a proprietária de uma linha de produtos de uma marca que estava em 60 unidades do Carrefour, na loja conceito Casa Belong Be, na rua Oscar Freire, e, ainda, no Mundo Social do Magalu.  “Eu e minha irmã participamos de várias feiras de negócios, onde chegávamos aos estandes e nem sequer éramos atendidas”, recorda Sheila, fundadora da Makeda Cosméticos. “Passamos por situações que parecem irreais, e muitas vezes nem éramos atendidas, como se nosso trabalho e nossa visão não tivessem valor.”
Essa realidade revela o que muitos empreendedores negros estão enfrentando na América Latina, onde as barreiras sociais e raciais dificultam as oportunidades de acesso a outros empreendedores. Por outro lado, Sheila conseguiu transformar o que foi o seu calvário em combustível para o crescimento da sua empresa. A Makeda Cosméticos se consagrou como uma marca de sucesso, mas também como uma marca que simboliza resistência e empoderamento no setor dos cosméticos voltados para a beleza negra.
O caminho de Sheila é um exemplo nítido de que, para muitos negros empreendedores, o processo de crescimento envolve uma incessante luta contra o preconceito e a exclusão, mas também uma prova de que é possível com persistência e inovação transformar opressões em grandes conquistas. 

Sheila Makeda e sua irmã Shirley Leela exemplificam o perfil de muitas empreendedoras negras da América Latina, de acordo com a primeira pesquisa realizada sobre esse segmento na região. Elas são jovens mulheres que mantiveram seus negócios por necessidade de sobrevivência, embora com perspectivas de crescimento extremamente limitadas. A maior parte desses negócios apresenta uma baixa renda, mas que é vital para a sobrevivência.

A pesquisa foi patrocinada pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), organizada pelo Instituto Feira Preta e executada pela agência de pesquisa Plano CDE, e consultou quase 3 mil afro empreendedores de países com as maiores populações negras da região, tais como Argentina, Brasil, Colômbia, Peru e Panamá.

Entre as descobertas mais esperadas estavam as péssimas condições enfrentadas pelas mulheres e pela população mais vulnerável. Mas uma das conclusão mais espantosas foi a identificação da barreira financeira como um dos maiores obstáculos ao crescimento do negócio dos empreendedores negros. O acesso mais difícil ao sistema bancário e a falta de crédito adequado são fatores que afetam diretamente para a expansão do negócio, gerando um círculo de limitações financeiras que impedem o progresso e desenvolvimento desses negócios. 

"Esta investigação dialoga com outro estudo realizado alguns anos antes, cujo objeto era testar quanto tempo se esperaria para que a geração atual conseguisse superar as já estabelecidas nas áreas de educação e mobilidade social e econômica", diz Eddi Bermúdez Marcelín, executivo sênior do CAF. "Mais uma vez, a população étnica, rural e feminina da América Latina é a mais afetada por esta estagnação social. Por isso, buscamos aliados que nos permitissem garantir o conhecimento e o financiamento que pudessem servir de base para as políticas públicas e privadas que poderiam mudar esta situação".

Foi assim que surgiu esta nova pesquisa, executada com a colaboração do Instituto Feira Preta e do Plano CDE, como já havia sido destacado anteriormente pela Coluna do Broadcast. Estas ações fazem parte também das novas iniciativas do banco de fomento, que estão sendo idealizadas para apoiar o avanço econômico e social da região. 

Financiamento 

O levantamento recente realizado no setor financeiro corroborou que os empreendedores negros encontram inúmeras barreiras, como a burocracia, a falta de acesso ao histórico bancário e até mesmo a discriminação. "Aproximadamente 20% da nossa carteira no CAF está concentrada no setor financeiro privado, e estamos criando iniciativas para ajudar a combater essas barreiras e mudar essa realidade", destaca Eddi Bermúdez Marcelín.

Com dificuldade para acessar empréstimos especificamente dedicados às suas empresas, 64% dos empreendedores negros da América Latina utilizam a mesma conta bancária tanto para as suas finanças pessoais quanto para a do negócio. Por consequência, as opções de crédito de que dispõem para fluxo de caixa e investimento são as mais onerosas.

No Brasil, por exemplo, muitos empreendedores realizam o aumento do limite do cartão de crédito para suprir suas necessidades empresariais. Na Argentina, empréstimos são frequentemente obtidos de agentes fora do sistema bancário. Na Colômbia, Peru e Panamá, muitos optam por solicitar recursos financeiros para amigos e familiares ou fazem uso do microcrédito produtivo, uma alternativa mais viável, embora mais restritiva do que o sistema bancário regular. Esses caminhos são os traçados como suporte às dificuldades enfrentadas pelos empreendedores negros no intuito de alavancar seus negócios, muitas vezes com deficiências nos suportes e condições disponíveis para os empresários de outros grupos. 

Esta é uma oportunidade para o sistema financeiro criar soluções de crédito direcionadas para o empreendedor negro", diz Adriana Barbosa, diretora executiva do Instituto Feira Preta. "É uma fatia de mercado significativa, que atualmente não é devidamente atingida e que, pela falta de acesso, acaba se voltando para as alternativas de crédito mais onerosas disponíveis. 

Empreendedor teve pedidos de financiamento recusados nove vezes

Apesar da insuficiência de alternativas, 74% dos empreendedores na América Latina já tentaram obter um financiamento. No Brasil e na Colômbia, um deles em cada dois teve os pedidos negados, por conta da existência de dívidas.

Maurício Delfino, proprietário da empresa Da Minha Cor, que atua em diversas áreas, tentou, sem sucesso, acessar a linha de crédito do Desenvolve SP por nove vezes. "Recebi nove negativas: eu corrigia o problema e tentava de novo", conta Delfino. "Hoje, brinco dizendo que, para eu aceitar um não, ele tem que vir no mínimo 11 vezes." 

Entretanto, Delfino representa uma exceção no perfil dos entrevistados. Com um negócio estruturado e forte comprometimento com a causa racial, ele integra os 24% de empreendedores negros com estas características. A maior parte, 56%, são gestores de empresas com menor estrutura e com pouco envolvimento no tema racial. Outros 20% são empreendedores vocacionais, a maioria jovens negros que lograram entrar nas universidades mediante o sistema de cotas, explica Adriana. 

O empreendedorismo por necessidade faz com que muitos afro empreendedores não se considerem empresários, com destaque para aqueles da Argentina e do Panamá, que se identificam mais como tal. No Brasil, a maioria se vê como autônomo.

Esse fenômeno expressa uma autoestima mais baixa entre os empreendedores, que, embora confiantes em sua capacidade de empreender e assumir riscos, têm uma visão limitada de sua possibilidade de criar e fortalecer uma rede de parceiros para expandir seus negócios. No Brasil, menos de 40% dos empreendedores negros compartilha essa visão, e no Panamá esse número é ainda menor, ficando em apenas 26%.

Essa realidade não tem relação direta com o nível de escolaridade. No Brasil e na Argentina, a maioria dos empreendedores negros possui apenas o ensino médio. Nos outros países analisados, a maior parte é composta por empreendedores com ensino superior.